domingo, 25 de junho de 2017

Desenvolvimento da Psicografia


Mais tarde reconheceu-se que a cesta e a prancheta nada mais eram do que apêndices da mão, e o médium, tomando diretamente o lápis, pôs-se a escrever por um impulso involuntário e quase febril. Por esse meio as comunicações se tornaram mais rápidas, mais fáceis e mais completas: é esse hoje, o meio mais comum, tanto que o número de pessoas dotadas dessa aptidão é bastante considerável e se multiplica dia a dia. A experiência, por fim, tornou conhecidas muitas outras variedades da faculdade mediúnica, descobrindo-se que as comunicações podiam igualmente verificar-se através da escrita direta dos Espíritos, ou seja, sem o concurso da mão do médium nem do lápis. Verificado o fato, um ponto essencial restava a considerar: o papel do médium nas respostas e a parte que nelas tomava, mecânica e espiritualmente. Duas circunstâncias capitais, que não escapariam a um observador atento, podem resolver a questão. A primeira é a maneira pela qual a cesta se move sob a sua influência, pela simples imposição dos dedos na borda; o exame demonstra a impossibilidade de um médium imprimir uma direção à cesta. Essa impossibilidade se torna sobretudo evidente quando duas ou três pessoas tocam ao mesmo tempo na mesma cesta; seria necessário entre elas uma concordância de movimentos realmente fenomenal; seria ainda necessária a concordância de pensamentos para que pudessem entender-se sobre a resposta a dar. Outro fato, não menos original, vem ainda aumentar a dificuldade. É a mudança radical da letra, segundo o Espírito que se manifesta e a cada vez que o mesmo Espírito volta, repetindo-a. Seria pois necessário que o médium se tivesse exercitado em modificar a própria letra de vinte maneiras diferentes, e sobretudo que ele pudesse lembrar-se da caligrafia deste ou daquele Espírito. A segunda circunstância resulta da própria natureza das respostas, que são, na maioria dos casos, sobretudo quando se trata de questões abstratas ou científicas, notoriamente fora dos conhecimentos e às vezes do alcance intelectual do médium. Este, de resto, geralmente, não tem consciência do que escreve e por outro lado nem mesmo entende a questão proposta, que pode ser feita numa lingua estranha ou mentalmente, sendo a resposta dada nessa língua. Acontece, por fim, que a cesta escreve de maneira espontânea, sem nenhuma questão proposta, sobre um assunto absolutamente inesperado. As respostas, em certos casos, revelam um teor de sabedoria, de profundeza e de oportunidade, pensamentos tão elevados e tão sublimes, que não podem vir senão de uma inteligência superior, impregnada da mais pura moralidade. De outras vezes são tão levianas, tão frívolas, e mesmo tão banais que a razão se recusa a admitir que possam vir da mesma fonte. Essa diversidade de linguagem não se pode explicar senão pela diversidade de inteligências que se manifestam. Essas inteligências são humanas ou não? Esse é o ponto a esclarecer e sobre o qual se encontrará nesta obra a explicação completa, tal como foi dada pelos próprios Espíritos. Eis portanto os efeitos evidentes que se produzem fora do círculo habitual de nossas observações; que não se passam de maneira misteriosa mas à luz do dia; que todos podem ver e constatar; que não são privilégio de nenhum indivíduo e que milhares de pessoas repetem à vontade todos os dias. Esses efeitos têm necessariamente uma causa e desde que revelam a ação de uma inteligência e de uma vontade, saem fora do domínio puramente físico. Muitas teorias foram formuladas a respeito. Passaremos a examiná-las dentro em pouco e veremos se podem tornar compreensíveis todos os fatos produzidos. Admitamos por enquanto a existência de seres distintos da Humanidade, pois é essa a explicação dada pelas inteligências, e vejamos o que eles nos dizem.

Manifestações Inteligentes


Se os fenômenos de que nos ocupamos se restringissem ao movimento dos objetos teriam permanecido no domínio das ciências físicas; mas não aconteceu assim: estavam destinados a nos colocarem na pista dos fatos de uma ordem estranha. Acreditou-se haver descoberto, não sabemos por iniciativa de quem, que o impulso dado aos objetos não era somente o produto de uma força mecânica cega, mas que havia nesse movimento a intervenção de uma causa inteligente. Esta via, uma vez aberta, oferecia um campo inteiramente novo de observações; era o véu que se levantava sobre muitos mistérios. Mas haverá realmente neste caso uma potência inteligente? Essa é a questão. Se essa potência existe, o que é ela, qual a sua natureza, a sua origem? É ela superior à Humanidade? Tais são as outras questões que decorrem da primeira. As primeiras manifestações inteligentes verificaram-se por meio de mesas que se moviam e davam determinados golpes, batendo um pé, e assim respondiam, segundo o que se havia convencionado, por "sim" ou por "não" à questão proposta. Até aqui, nada de seguramente convincente para os céticos, porque podia crer-se num efeito do acaso. Em seguida, obtiveram-se respostas mais desenvolvidas por meios das letras do alfabeto: dando o móvel um número de ordem de cada letra, chegava-se a se formar palavras e frases que respondiam às questões propostas. A justeza das respostas e sua correspondência com a pergunta provocaram a admiração. O ser misterioso que assim respondia, interpelado sobre a sua natureza, declarou que era um Espírito ou Gênio, deu o seu nome e forneceu diversas informações a seu respeito. Esta é uma circunstância muito importante a notar. Ninguém havia então pensado nos Espíritos como um meio de explicar o fenômeno; foi o próprio fenômeno que revelou a palavra. Fazem-se hipóteses freqüentemente nas ciências exatas para se conseguir uma base ao raciocínio; mas neste caso não foi o que se deu. Esse meio de correspondência era demorado e incômodo. O Espírito, e esta é também uma circunstância digna de nota, indicou outro. Foi um desses seres invisíveis quem aconselhou a adaptar-se um lápis a uma cesta ou a um outro objeto. A cesta, posta sobre uma folha de papel, é movimentada pela mesma potência oculta que faz girar as mesas; mas em lugar de um simples movimento regular, o lápis escreve por si mesmo, formando palavras, frases, discursos inteiros de muitas páginas, tratando das mais altas questões de Filosofia, de Moral, de Metafísica, de Psicologia etc. e isso com tanta rapidez como se escrevesse à mão. Esse conselho foi dado simultaneamente na América, na França e em diversos países. Eis os termos em que foi dado em Paris, a 10 de junho de 1853, a um dos mais fervorosos adeptos da Doutrina, que há muitos anos, desde 1849, se ocupava com a evocação dos Espíritos: "Vá buscar no quarto ao lado a cestinha; prenda nela um lápis, coloque-a sobre o papel e ponha-lhe os dedos na borda". Feito isso, depois de alguns instantes a cesta se pôs em movimento e o lápis escreveu legivelmente esta frase: "Isto que eu vos disse, proíbo-vos expressamente de dizer a alguém; na primeira vez que escrever, escreverei melhor". O objeto a que se adapta o lápis, não sendo mais que simples instrumento, sua natureza e sua forma não importam; procurou-se a disposição mais cômoda e foi assim que muitas pessoas passaram a usar uma prancheta. A cesta ou a prancheta não podem ser postas em movimento senão sob a influência de certas pessoas, dotadas para isso de um poder especial e que se designa pelo nome de médiuns, ou seja, intermediários entre os Espíritos e os homens. As condições que produzem este poder estão ligadas a causas ao mesmo tempo físicas e espirituais ainda imperfeitamente conhecidas, porquanto se encontram médiuns de todas as idades, de ambos os sexos e em todos os graus de desenvolvimento intelectual. Essa faculdade, entretanto, se desenvolve pelo exercício.

A Doutrina e seus Contraditores


A Doutrina Espírita, como toda novidade, tem seus adeptos e seus contraditores. Tentaremos responder a algumas das objeções destes últimos, examinando o valor das razões em que se apóiam, sem termos entretanto a pretensão de convencer a todos; pois há pessoas que acreditam que a luz foi feita somente para elas. Dirigimo-nos às pessoas de boa fé, sem idéias preconcebidas ou posições firmadas mas sinceramente desejosas de se instruírem, e lhes demonstraremos que a maior parte das objeções que fazem à doutrina provêm de uma observação incompleta dos fatos e de um julgamento formado com muita ligeireza e precipitação. Recordaremos inicialmente, em breves palavras, a série progressiva de fenômenos que deram origem a esta doutrina. O primeiro fato observado foi o movimento de objetos; designaram-no vulgarmente com o nome de mesas girantes ou dança das mesas. Esse fenômeno, que parece ter sido observado primeiramente na América, ou, melhor, que se teria repetido nesse país, porque a História prova que ele remonta à mais alta Antigüidade, produziu-se acompanhado de circunstâncias estranhas como ruídos insólitos e golpes desferidos sem uma causa ostensiva, conhecida. Dali, propagou-se rapidamente pela Europa e por outras partes do mundo; a princípio provocou muita incredulidade, mas a multiplicidade das experiências em breve não mais permitiu que se duvidasse da sua realidade. Se esse fenômeno se tivesse restringido ao movimento de objetos materiais poderia ser explicado por uma causa puramente física. Estamos longe de conhecer todos os agentes ocultos da Natureza e mesmo todas as propriedades dos que já conhecemos; a eletricidade, aliás, multiplica diariamente ao infinito os recursos que oferece ao homem e parece dever iluminar a ciência com uma nova luz. Não haveria portanto nada de impossível em que a eletricidade, modificada por certas circunstâncias, ou qualquer outro agente desconhecido, fosse a causa desse movimento. A reunião de muitas pessoas, aumentando o poder de ação, parecia dar apoio a essa teoria porque se poderia considerar essa reunião como uma pilha múltipla, em que a potência corresponde ao número de elementos. O movimento circular nada tinha de extraordinário: pertence à Natureza. Todos os astros se movem circularmente; poderíamos, pois, estar em face de um pequeno reflexo do movimento geral do Universo; ou, melhor dito, uma causa até então desconhecida poderia produzir acidentalmente, nos pequenos objetos e em dadas circunstâncias, uma corrente análoga à que impulsiona os mundos. Mas o movimento não era sempre circular. Freqüentemente era brusco, desordenado, o objeto violentamente sacudido, derrubado, conduzido numa direção qualquer e, contrariamente a todas as leis da estática, suspenso e mantido no espaço. Não obstante, nada havia ainda nesses fatos que não pudesse ser explicado pelo poder de um agente físico invisível. Não vemos a eletricidade derrubar edifícios, arrancar árvores, lançar à distância os corpos mais pesados, atraí-los ou repeli-los? Supondo-se que os ruídos insólitos e os golpes não fossem efeitos comuns da dilatação da madeira ou de qualquer outra causa acidental, poderiam ainda muito bem ser produzidos por acumulação do fluido oculto. A eletricidade não produz os ruídos mais violentos? Até esse momento, como se vê, tudo pode ser considerado no domínio dos fatos puramente físicos e fisiológicos. E sem sair dessa ordem de idéias, ainda haveria matéria para estudos sérios, digna de prender a atenção dos sábios. Por que não aconteceu assim? É penoso dizer, mas o fato se liga a causas que provam, entre mil outras semelhantes, a leviandade do espírito humano. De início, a vulgaridade do objeto principal que serviu de base às primeiras experiências talvez não lhe seja estranha. Que influência não teve uma simples palavra, muitas vezes, sobre coisas mais graves! Sem considerar que o movimento poderia ser transmitido a um objeto qualquer, prevaleceu a idéia da mesa, sem dúvida por ser o objeto mais cômodo e porque todos se sentam mais naturalmente em torno de uma mesa que de qualquer outro móvel. Ora, os homens superiores são às vezes tão pueris que não seria impossível certos espíritos de elite se julgarem diminuídos se tivessem de ocupar-se daquilo que se convencionaria chamar a dança das mesas. É mesmo provável que, se o fenômeno observado por Galvani o tivesse sido por homens vulgares e caracterizado por um nome burlesco, estivesse ainda relegado ao lado da varinha mágica. Qual o sábio que não se teria julgado diminuído ao ocupar-se da dança das rãs? Alguns, entretanto, bastante modestos para aceitarem que a Natureza poderia não lhes ter dito a última palavra, quiseram ver para tranqüilidade de consciência. Mas aconteceu que o fenômeno nem sempre correspondeu à sua expectativa, e por não se ter produzido constantemente, à sua vontade e segundo a sua maneira de experimentação, concluíram eles pela negativa. Malgrado, porém, a sua sentença, as mesas, pois que há mesas que continuam a girar, e podemos dizer com Galileu: "Contudo, elas se movem". Diremos ainda que os fatos se multiplicaram de tal modo que têm hoje direito de cidadania, e que se trata apenas de encontrar para eles uma explicação racional. Pode-se induzir qualquer coisa contra a realidade do fenômeno pelo fato de ele não se produzir sempre de maneira idêntica, segundo a vontade e as exigências do observador? Os fenômenos de eletricidade e de química não estão subordinados a determinadas condições e devemos negá-los porque não produzem fora delas? Devemos estranhar que o fenômeno do movimento de objetos pelo fluido humano tenha também as suas condições e deixe de se produzir quando o observador, firmado no seu ponto de vista, pretende fazê-lo seguir ao seu capricho ou sujeitá-lo às leis dos fenômenos comuns, sem considerar que para fatos novos podem e devem haver novas leis? Ora, para conhecer essas leis é necessário estudar as circunstâncias em que os fatos se produzem e esse estudo não pode ser feito sem uma observação perseverante, atenta, e por vezes bastante prolongada. Mas, objetam algumas pessoas, há freqüentemente fraudes visíveis. Perguntaremos inicialmente se estão bem certas de que há fraudes e se não tomaram por fraudes efeitos que não conseguiram apreender, mais ou menos como o camponês que tomava um sábio professor de física, fazendo experiências, por um destro escamoteador. E mesmo supondo-se que as fraudes tenham ocorrido algumas vezes, seria isso razão para negar o fato? Deve- se negar a Física porque há prestidigitadores que se enfeitam com o título de físicos? É necessário ao demais considerar o caráter das pessoas e o interesse que elas poderiam ter em enganar. Seria tudo, então, simples brincadeira? Pode-se muito bem brincar um instante, mas uma brincadeira indefinidamente prolongada seria tão fastidiosa para o mistificador como para o mistificado. Haveria, além disso, uma mistificação que se propaga de um extremo a outro do mundo e entre as pessoas mais graves, mais veneráveis e esclarecidas, alguma coisa pelo menos tão extraordinária quanto o próprio fenômeno.

Alma, Princípio Vital e Fluído Vital


Há outra palavra sobre a qual igualmente devemos entender-nos porque é uma das chaves de toda doutrina moral e tem suscitado numerosas controvérsias, por falta de uma acepção bem determinada; é a palavra alma. A divergência de opiniões sobre a natureza da alma provém da aplicação particular que cada qual faz desse vocábulo. Uma língua perfeita, em que cada idéia tivesse a sua representação por um termo próprio, evitaria muitas discussões; com uma palavra para cada coisa todos se entenderiam. Segundo uns, a alma é o princípio da vida orgânica material; não tem istência própria e se extingue com a vida: é o puro materialismo. Nesse sentido e por comparação dizem de um instrumento quebrado, que não produz mais som, que ele não tem alma. De acordo com esta opinião a alma seria um efeito e não uma causa. Outros pensam que a alma é o princípio da inteligência, agente universal de que cada ser absorve uma porção. Segundo estes, não haveria em todo o universo senão uma única alma, distribuindo fagulhas para os diversos seres inteligentes, durante a vida; após a morte cada fagulha volta à fonte comum, confundindo-se no todo, como os córregos e os rios retornam ao mar de onde saíram. Esta opinião difere da precedente em que, segundo esta hipótese, existe em nós algo mais do que a matéria, restando qualquer coisa após a morte; mas é quase como se nada restasse, pois não subsistindo a individualidade não teríamos mais consciência de nós mesmos. De acordo com esta opinião, a alma universal seria Deus e cada ser uma porção da Divindade; é esta uma variedade do Panteísmo. Segundo outros, enfim a alma é um ser moral, distinto, independente da matéria e que conserva a sua individualidade após a morte. Esta concepção é incontestavelmente a mais comum, porque sob um nome ou outro a idéia desse ser que sobrevive ao corpo se encontra em estado de crença instintiva, e independente de qualquer ensinança, entre todos os povos, qualquer que seja o seu grau de civilização. Essa doutrina, para a qual a alma é causa e não efeito, é a dos espiritualistas. Sem discutir o mérito dessas opiniões, e não considerando senão o lado lingüístico da questão, diremos que essas três aplicações da palavra alma constituem três idéias distintas, que reclamariam cada uma um termo diferente. Essa palavra tem, portanto, significação tríplice, e cada qual está com a razão, segundo o seu ponto de vista, ao lhe dar uma definição; a falha se encontra na língua, que não dispõe de mais de uma palavra para três idéias. Para evitar confusões, seria necessário restringir a acepção da palavra alma a uma de suas idéias. Escolher esta ou aquela é indiferente, simples questão de convenção, e o que importa é esclarecer. Pensamos que o mais lógico é tomá-la na sua significação mais vulgar, e por isso chamamos alma ao ser imaterial e individual que existe em nós e sobrevive ao corpo. Ainda que este ser não existisse e não fosse mais que um produto da imaginação, seria necessário um termo para designá-lo. Na falta de uma palavra especial para cada uma das duas outras idéias, chamaremos: Princípio vital, o princípio da vida material e orgânica, seja qual for a sua fonte, que é comum a todos os seres vivos, desde as plantas ao homem. A vida podendo existir, sem a faculdade de pensar, o princípio vital é coisa distinta e independente. A palavra vitalidade não daria a mesma idéia. Para uns, o princípio vital é uma propriedade da matéria, um efeito que se produz quando a matéria se encontra em dadas circunstâncias; segundo outros, e essa idéia é mais comum, ele se encontra num fluido especial, universalmente espalhado,do qual cada ser absorve e assimila uma parte durante a vida, como veremos os corpos inertes absorverem a luz. Este seria então o fluido vital, que, segundo certas opiniões, não seria outra coisa senão o fluido elétrico animalizado, também designado por fluido magnético, fluido nervoso, etc. Seja como for, há um fato incontestável, — pois resulta da observaçã e é que os seres orgânicos possuem uma força íntima que produz o fenômeno da vida, enquanto essa força existe; que a vida material é comum a todos os seres orgânicos, e que ela independe da inteligência e do pensamento; que a inteligência e o pensamento são faculdades próprias de certas espécies orgânicas; enfim, que entre as espécies orgânicas dotadas de inteligência e pensamento há uma, dotada de um senso moral especial que lhe dá incontestável superioridade perante as outras, e que é a espécie humana. Compreende-se que, com uma significação múltipla, a alma não exclui o materialismo, nem o panteísmo. Mesmo o espiritualista pode muito bem entender a alma segundo uma ou outra das duas primeiras definições, sem prejuízo do ser material distinto, ao qual dará qualquer outro nome. Assim, essa palavra não representa uma opinião: é um Proteu, que cada qual ajeita a seu modo, o que dá origem a tantas disputas intermináveis. Evitaríamos igualmente a confusão, mesmo empregando a palavra alma nos três casos, desde que lhe ajuntássemos um qualificativo para especificar a maneira pela qual a encaramos ou a aplicação que lhe damos. Ela seria então um termo genérico, representando ao mesmo tempo o princípio da vida material, da inteligência e do senso moral, que se distinguiriam pelo atributo, como o gás, por exemplo, que se distingue ajuntando-se-lhe as palavras hidrogênio, oxigênio e azoto. Poderíamos dizer, e talvez fosse o melhor, a alma vital para designar o princípio da vida material, a alma intelectual para o princípio da inteligência, e a alma espírita para o princípio da nossa individualidade após a morte. Como se vê, tudo isto é questão de palavras, mas questão muito importante para nos entendermos. Dessa maneira, a alma vital seria comum a todos os seres orgânicos: plantas, animais e homens, e alma espírita pertenceria somente ao homem. Acreditamos dever insistir tanto mais nestas explicações, quanto a Doutrina Espírita repousa naturalmente sobre a existência em nós de um ser independente da matéria e que sobrevive ao corpo. Devendo repetir freqüentemente a palavra alma no curso desta obra, tínhamos de fixar o sentido em que a tomamos, a fim de evitar qualquer engano. Vamos, agora, ao principal objetivo desta instrução preliminar.

O Espiritismo e o Espiritualismo


Para as coisas novas necessitamos de palavras novas, pois assim o exige a clareza de linguagem, para evitarmos a confusão inerente aos múltiplos sentidos dos próprios vocábulos. 
As palavras espiritual, espiritualista, espiritualismo têm uma significação bem definida; dar-lhes outra, para aplicá-las à Doutrina dos Espíritos, seria multiplicar as causas já tão numerosas de anfibologia. 
Com efeito, o espiritualismo é o oposto do materialismo; quem quer que acredite haver em si mesmo alguma coisa além da matéria é espiritualista; mas não se segue daí que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível. 
 Em lugar das palavras espiritual e espiritualismo empregaremos, para designar esta última crença as palavras espírita e espiritismo, nas quais a forma lembra a origem e o sentido radical e que por isso mesmo têm a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando para espiritualismo a sua significação própria. 
Diremos, portanto, que a Doutrina Espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas, ou, se o quiserem, os espiritistas. Como especialidade "O Livro dos Espíritos" contém a Doutrina Espírita; como generalidade liga-se ao Espiritualismo, do qual apresenta uma das fases. Essa a razão porque traz sobre o título as palavras: Filosofia Espiritualista.

A dialética espírita

 Hegel definiu a estrutura e a função do diálogo, identificando as suas leis com as do próprio ser: tese, antítese e síntese. Mais tarde, Marx e Engels deslocaram o diálogo dessa concepção ontológica, para lhe dar um sentido materialista e revolucionário. 
Coube a Hamelin, entretanto, defini-lo em seu aspecto mais fecundo, como um processo de fusão necessária da tese e da antítese, na produção de uma nova idéia ou nova tese. Este, a nosso ver, é o processo dialético do Espiritismo, que em vez de dar ênfase à contradição em si, à luta dos opostos, prefere dá-la à harmonia, à fusão dos contrários, para uma nova criação. E é nesse sentido que se desenvolve o diálogo no "O Livro dos Espíritos".
 Nunca houve, aliás, um diálogo como este. Jamais um homem se debruçou, com toda a segurança do homem moderno, nas bordas do abismo do incognoscível, para interrogá-lo, ouvir as suas vozes misteriosas, contradizê-lo, discutir com ele, e afinal arrancar-lhe os mais íntimos segredos. 
E nunca, também, o abismo se mostrou tão dócil, e até mesmo desejoso de se revelar ao homem em todos os seus aspectos. Sócrates ouvia as vozes do seu "daimónion" e discutia com o Oráculo de Delfos. Mas Kardec não se limitou a isso: foi mais longe, dialogando com todo o mundo invisível, analisando rigorosamente as suas vozes, ouvindo inferiores e superiores, para descobrir as leis desse mundo, as formas de vida nele existentes, o mecanismo das suas relações com o nosso. 
 O método dialético é o processo natural do desenvolvimento, tanto do pensamento como de todas as coisas. Emmanuel, certa vez, comparou o Velho Testamento a um apelo dos homens a Deus, e o Novo Testamento, à resposta de Deus. Aceitando essa imagem, podemos dizer que "O Livro dos Espíritos" é a síntese desse diálogo, é o momento em que segundo a definição de Hamelin, o apelo e a resposta se fundem na compreensão espiritual, abrindo caminho a uma nova fase da vida terrena.

A filosofia espírita


Esta rápida apreciação da estrutura de "O Livro dos Espíritos", em suas ligações com as demais obras da codificação, parece-nos suficiente para mostrar que ele constitui, como dissemos, no início, o arcabouço filosófico do Espiritismo. Contém, segundo Kardec declarou no frontispício, "Os princípios da Doutrina Espírita". É, portanto, o seu tratado filosófico. Embora não tenha sido elaborado em linguagem técnica, e não observe os rigores da minuciosa exposição filosófica, é todo um complexo e amplo sistema de filosofia que nele se expõe. Ao apreciá-lo, sob esse aspecto, devemos considerar que Kardec não era um filósofo, mas um educador, um especialista em pedagogia, discípulo emérito de Pestalozzi. Daí o aspecto antes didático do que propriamente de exposição filosófica que imprimiu ao livro. Em segundo lugar, a obra não foi propriamente escrita por ele, mas elaborada com as respostas dadas pelos Espíritos às suas perguntas, nas sessões mediúnicas, com as meninas Boudin e Japhet, e mais tarde com outros médiuns. Em terceiro lugar, o livro não se destinava a formar escola filosófica, a conquistar os meios especializados, mas apenas a divulgar os princípios da doutrina de maneira ampla, convocando os homens em geral para o estudo de uma realidade superior a todas as elucubrações do intelecto. Em quarto lugar, o próprio Kardec teve o cuidado de advertir, nos "Prolegômenos", que evitava os prejuízos do espírito de sistema, como vemos neste trecho, em que se refere ao ensino dos Espíritos: "Este livro é o compêndio dos seus ensinamentos. Foi escrito por ordem e sob ditado dos Espíritos superiores para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, livre dos prejuízos do espírito de sistema". Como se vê, "estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, livre dos prejuízos do espírito de sistema" e não criar uma nova escola filosófica, o que implicaria toda uma rígida sistematização. Esse propósito vem ao encontro do pensamento dos filósofos modernos, como vemos, por exemplo, em Ernest Cassirer, que em sua "Antropologia Filosófica", referindo-se à inconveniência dos sistemas, diz: "Cada teoria se converte num leito de Procusto, em que os fatos empíricos são obrigados a se acomodar a um padrão preconcebido". Max Scheller, por sua vez, comenta: "Dispomos de uma antropologia científica, outra filosófica e outra teológica, que se ignoram entre si". Kardec esquivou-se precisamente a isso, tanto mais que o espírito de sistema seria a própria negação dos objetivos da doutrina. Quanto ao problema da linguagem técnica, não devemos nos esquecer de que o livro se destinava ao grande público, e não apenas aos especialistas. Podemos lembrar, a propósito, o exemplo de Descartes, que escreveu o seu "Discurso do Método" em francês, quando o latim era a língua oficial da filosofia, porque desejava dar-lhe maior divulgação. Mesmo que Kardec fosse um filósofo especializado, a linguagem técnica não serviria aos seus propósitos nesta obra. Quanto ao método didático, não seria este o primeiro livro de filosofia a dele se socorrer. Podemos lembrar, por exemplo, "A Ética", de Espinosa. Kardec inicia este livro com a definição de Deus, como Espinosa naquele, e se não segue a forma geométrica de exposição, por meio de definições, axiomas, proposições e escólios, segue entretanto a forma lógica, através de perguntas e respostas, intercaladas de comentários e explicações. Há, aliás, curiosas similaridades de estrutura, de posição, de ligações históricas e de princípios, entre esses dois livros, reclamando estudo mais aprofundado. Como as há entre o que se pode chamar a revolução cartesiana e o Espiritismo, a começar pelos famosos sonhos de Descartes e a sua convicção de haver sido inspirado pelo Espírito da Verdade. Yvonne Castellan, num breve, falho, às vezes gritantemente injusto, mas em parte simpático estudo da doutrina referindo-se ao "O Livro dos Espíritos", mostra que: "O sistema é completo, e compreende uma metafísica, inteiramente repleta de considerações físicas ou genéticas, e uma moral". Numa análise mais séria, a autora teria visto que a estrutura é mais complexa do que supôs. O livro começa pela metafísica, passando depois à cosmologia, à psicologia, aos problemas propriamente espíritas da origem e natureza do espírito e suas ligações com o corpo, bem como aos da vida após a morte, para chegar, com as leis morais, à sociologia e à ética, e concluir, no Livro IV, com as considerações de ordem teológica sobre as penas e gozos futuros e a intervenção de Deus na vida humana. Todo um vasto sistema, sem as exigências opressoras ou os prejuízos do espírito de sistema, numa estrutura livre e dinâmica, em que os problemas são postos em debate. Lembrando-nos dos primórdios do Cristianismo, podemos dizer que o Espiritismo tem sobre ele uma vantagem, no tocante ao problema filosófico. A simplicidade de "O Livro dos Espíritos" não chega ao ponto de nos obrigar a adaptar sistemas antigos aos nossos princípios, como aconteceu com Santo Agostinho e São Tomaz, em relação a Platão e Aristóteles, para a criação da chamada filosofia cristã. O Espiritismo já tem o seu próprio sistema, na forma ideal que o futuro consagrará, e cujas vantagens vimos acima. Por outro lado, é curioso notar que "O Livro dos Espíritos" se enquadra numa das formas clássicas e mais fecundamente livres da tradição filosófica: o diálogo. Por tudo isso, vê-se que Kardec, sem ser o que se pode chamar um filósofo profissional, tinha muita razão ao afirmar, no capítulo VI da "Conclusão", referindo-se ao Espiritismo: "Sua força está na sua filosofia, no apelo que faz à razão e ao bom senso".

A Codificação Espírita

 1º) "O Livro dos Espíritos" não é, porém, apenas, a pedra fundamental ou o marco inicial da nova codificação. Porque é o seu próprio delineamento, o seu núcleo central e ao mesmo tempo o arcabouço geral da doutrina. Examinando-o, em relação às demais obras de Kardec, que completam a codificação, verificamos que todas essas obras partem do seu conteúdo. Podemos definir as várias zonas do texto correspondentes a cada uma delas. Assim como, na Bíblia, há o núcleo central do Pentateuco, e no Evangelho o do ensino moral do Cristo, em "O Livro dos Espíritos" podemos encontrar uma parte que se refere a ele mesmo, ao seu próprio conteúdo: é o constante dos Livros I e II, até o capítulo quinto. Este núcleo representa, dentro da esquematização geral da codificação, que encontramos no livro, a parte que a ele corresponde. Quanto aos demais, verificamos o seguinte: 

 2º) "O Livro dos Médiuns", seqüência natural deste livro, que trata especialmente da parte experimental da Doutrina, tem a sua fonte no Livro II, a partir do capítulo sexto até o final. Toda a matéria contida nessa parte é reorganizada e ampliada naquele livro, principalmente a referente ao capítulo nono: "Intervenção dos Espíritos no mundo corpóreo". 

 3º) "O Evangelho segundo o Espiritismo" é uma decorrência natural do Livro III, em que são estudadas as leis morais, tratando-se especialmente da aplicação dos princípios da moral evangélica, bem como dos problemas religiosos da adoração, da prece e da prática da caridade. Nessa parte o leitor encontrará, inclusive, as primeiras formas de "Instruções dos Espíritos", comuns àquele livro, com a transcrição de comunicações por extenso e assinadas, sobre questões evangélicas. 

 4º) "O Céu e o Inferno ou a Justiça Divina Segundo o Espiritismo" decorre do Livro IV, "Esperanças e Consolações" em que são estudados os problemas referentes às penas e aos gozos terrenos e futuros, inclusive com a discussão do dogma das penas eternas e a análise de outros dogmas, como o da ressurreição da carne, e os do paraíso, inferno e purgatório. 

5º) "A Gênese, os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo", relaciona-se aos capítulos II, III e IV do Livro I, e capítulo IX, X e XI do Livro II, assim como a parte dos capítulos do Livro III que tratam dos problemas genésicos e da evolução física da Terra. Por seu sentido amplo, que abrange ao mesmo tempo as questões da formação e do desenvolvimento do globo terreno, e as referentes a passagens evangélicas e escriturísticas, esse livro da codificação se ramifica de maneira mais difusa que os outros, na estrutura da obra-mater. 

 6º) O pequeno livro introdutório ao estudo da doutrina, "O que é o Espiritismo" que não se inclui propriamente na codificação, também ele está diretamente relacionado com "O Livro dos Espíritos", decorrendo da "Introdução" e dos "Prolegômenos". 

 7º) "Obras Póstumas", que representa o testamento doutrinário de Allan Kardec. Reúne os seus derradeiros escritos e as anotações íntimas, destinadas a servir mais tarde para a elaboração da História do Espiritismo que ele não pode realizar. A codificação se apresenta, pois, como um todo homogêneo e conseqüente. À luz desse estudo, caem por terra as tentativas de separar de um ou outro livro do bloco da codificação, como possível expressão de uma forma diferente de pensamento. E note-se que as ligações aqui assinaladas, de maneira apenas formal, podem e devem ser esclarecidas em profundidade, por um estudo minucioso do conteúdo das diversas partes de "O Livro dos Espíritos", em confronto com os demais livros. Esse estudo exigiria, também, uma análise dos textos primitivos, como a primeira edição deste livro e a primeira de "O Livro dos Médiuns" e do "Evangelho", pois, como se sabe, todas essas obras foram ampliadas por Kardec depois de suas primeiras edições, sempre sob a assistência e orientação dos Espíritos. Num estudo mais amplo e profundo, seria possível mostrar-se o desenvolvimento de certos temas, que apenas colocados pelo "O Livro dos Espíritos" vão ter a sua solução em obras posteriores. E o que se verifica, por exemplo, com as ligações do Cristianismo e o Espiritismo, que se definem completamente em "O Evangelho", ou com o problema controvertido da origem do homem, que vai ter a sua explicação definitiva em "A Gênese", ou ainda com as questões mediúnicas, solucionadas no "O Livro dos Médiuns', e as teológicas e escriturísticas, no 
"O Céu e o Inferno". Convém notar, entretanto, que o desenvolvimento de todas essas questões não representa, em nenhum caso, a modificação dos princípios firmados neste livro. Às vezes, problemas apenas aflorados em "O Livro dos Espíritos" vão ser desenvolvidos de tal maneira em outras obras, que, ao lê-las, temos a impressão de encontrar novidades. A verdade, entretanto, é que neste livro eles já foram assinalados de maneira sintética. É o que ocorre, por exemplo, com o problema da evolução geral, definida por Leon Denis naquela frase célebre: "A alma dorme na pedra, sonha no vegetal, agita-se no animal e acorda no homem". Veja-se, a este respeito, a definição do item 540 deste livro, que para maior fidelidade a reproduzimos. "É assim que tudo serve, tudo se encadeia na Natureza, desde o átomo primitivo até o arcanjo, pois ele mesmo começou pelo átomo. Admirável lei de harmonia, de que o vosso Espírito limitado ainda não pode abranger o conjunto!"