terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Os falsos devotos


Minha lembrança acaba de ser evocada por meu retrato e meus versos; duas vezes tocada na vaidade feminina e em meu amor-próprio de poetisa, venho reconhecer vossa benevolência, esboçando em largos traços a silhueta dos falsos devotos, que são para a religião o que é para a sociedade a mulher falsamente honesta. 
O assunto entra no quadro de meus estudos literários, cuja nuança Lady Tartufe exprimia.
 Os falsos devotos sacrificam a aparência e traem o verdadeiro; têm o coração seco e os olhos úmidos, a bolsa fechada e a mão aberta; falam de boa vontade ao próximo, criticando-lhe as ações de maneira adocicada, que exagera o mal, apequena o mérito. Muito ardentes para a conquista dos bens materiais e mundanos, trepam-se em tesouros imaginários, que a morte dispersa, e negligenciam os verdadeiros bens, que servem ao fim do homem e são a riqueza da eternidade. 
Os hipócritas da devoção são os répteis da natureza moral; vis, baixos, evitam as faltas castigadas pela vindita pública e na sombra cometem atos sinistros. 
Quantas famílias desunidas e espoliadas! quanta confiança traída! quantas lágrimas e, até, quanto sangue!... 
A comédia é o inverso da tragédia. Atrás do celerado marcha o bufão, e os falsos devotos têm por acólitos seres ineptos, que só agem por imitação: à maneira dos espelhos, refletem a fisionomia dos vizinhos. Tomam-se a sério, enganam-se a si próprios, troçam por timidez aquilo em que acreditam, exaltam o de que duvidam, comungam com ostentação e acendem às escondidas pequenas velas, às quais atribuem muito mais virtude do que à santa hóstia. 
Os falsos devotos são os verdadeiros ateus da virtude, da esperança, da natureza e de Deus; negam o verdadeiro e afirmam o falso. Contudo a morte os levará besuntados de arrebiques e cobertos de ouropéis, que os disfarçam, e os lançará ofegantes em plena luz. 

(Espírito de Delphine de Girardin - R. E. 1863)

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